Vídeos, músicas, poemas, reflexões, pensamentos...seja bem vindo(a)!
Pesquisar este blog
sábado, 10 de abril de 2021
UMA CARNIÇA - CHARLES BAUDELAIRE Poema: Uma carniça
Lembra-te, meu amor, do objeto que encontramos
Numa bela manhã radiante:
Na curva de um atalho, entre calhaus e ramos.
Uma carniça repugnante.
As pernas para cima, qual mulher lasciva.
A transpirara miasmas e humores.
Eis que as abria desleixada e repulsiva.
O ventre prenhe de livores.
Ardia o sol naquela pútrida torpeza.
Como a cozê-la em rubra pira
E para o cêntuplo volver à Natureza
Tudo o que ali ela reunira.
E o céu olhava do alto a esplêndida carcaça
Como uma flor a se entreabrir.
O fedor era tal que sobre a relva escassa
Chegaste quase a sucumbir.
Zumbiam moscas sobre o ventre e, em alvoroço.
Dali saíam negros bandos
De larvas, a escorrer como um líquido grosso
Por entre esses trapos nefandos.
E tudo isso ia e vinha, ao modo de uma vaga.
Que esguichava a borbulhar.
Como se o corpo, a estremecer de forma vaga.
Vivesse a se multiplicar.
E esse mundo emitia uma bulha esquisita.
Como vento ou água corrente.
Ou grãos que em rítmica cadência alguém agita
E à joeira deixa novamente.
As formas fluíam como um sonho além da vista.
Um frouxo esboço em agonia.
Sobre a tela esquecida, e que conclui o artista
Apenas de memória um dia.
Por trás das rochas, irrequieta, uma cadela
Em nós fixava o olho zangado
Aguardando o momento de reaver àquela
Carniça abjeta o seu bocado.
– Pois há de ser como essa coisa apodrecida
Essa medonha corrupção
Estrela de meus olhos, sol da minha vida.
Tu, meu anjo e minha paixão!
Sim! Tal serás um dia, ó deusa da beleza.
Após a bênção derradeira.
Quando, sob a erva e as florações da natureza
Tornares afinal à poeira.
Então, querida, dize à carne que se arruína.
Ao verme que te beija o rosto
Que eu preservarei a forma e a substância divina
De meu amor já decomposto!
As flores do mal, Charles Baudelaire.
Fonte: Livro Se liga na língua. 9° ano. Ed. Moderna. 1° Ed. São Paulo, 2018, p. 28 e 2